João Pedro Matos

Tesouros da Música Portuguesa

A vida é um Circo de Feras?

O grupo de rock Xutos & Pontapés está a comemorar quarenta anos de existência. Também o álbum London Calling da banda britânica The Clash completa quarenta anos em 2019. Não se trata de uma mera coincidência. Pois para compreender-se a história do mais importante grupo de rock português, não se deve perder de vista as suas raízes musicais. E a sua principal referência é a do movimento punk, movimento que teve a sua génese em meados da década de setenta do século passado nos Estados Unidos, designadamente com o grupo Ramones. Esta corrente musical reagia contra a guerra, a violência e os excessos da sociedade de consumo. No Reino Unido encontrou os seus principais expoentes nas bandas Sex Pistols e The Clash. Seria precisamente esta última, a influência mais relevante para os Xutos e Pontapés. O grupo bebeu da estética que encontramos em London Calling, como por exemplo nas faixas The Guns of Brixton e Lost in the Supermarket. E em Portugal o radialista António Sérgio já havia espalhado pelas ondas hertzianas as sementes dessa estética que marcaria toda uma geração nos finais da década de setenta do século XX. Bastará recordar o projeto Faíscas de Pedro Ayres de Magalhães que, depois de incorporar o Corpo Diplomático, daria origem aos Heróis do Mar. Encontramos o próprio Zé Pedro ligado aos Faíscas, antes de fundar os Xutos & Pontapés que só dariam o seu primeiro concerto ao vivo em 13 de Janeiro de 1979.

Alguns anos depois, tive oportunidade de assistir pela primeira vez a um concerto dos Xutos & Pontapés. Foi em Coimbra, no Teatro Académico Gil Vicente. Tinham acabado de lançar o single Barcos Gregos, retirado do álbum O Cerco, o mesmo registo que contém hinos como Homem do Leme e Conta-me Histórias. Não demorei a aperceber-me que o termo que os poderia definir seria a palavra atitude: perante a vida, o quotidiano, face ao lugar comum que todos nós partilhamos e muitas vezes não nos damos conta. A sua verdadeira revolução, musical, tinha uma mensagem bastante simples: na vida há muito por que vale a pena lutar, mas também muitas armadilhas. As suas letras, além de uma evidente crítica social, constituíam um manancial de histórias e vivências que não deixava indiferente quem os escutava. Confesso que na altura Homem do Leme foi o poema daqueles que cantaram o que mais apreciei. Mas também vi nesse concerto em Coimbra algumas coisas que não gostei. Contudo, em 1987 os Xutos & Pontapés tiveram a sua consagração com o álbum Circo de Feras. Contavam então na sua formação com Tim na viola baixo e voz principal, Zé Pedro na guitarra, João Cabeleira também na guitarra, Kalú na bateria, Gui no saxofone e nas teclas Carlos Maria Trindade (o músico dos Heróis do Mar que produziria o disco). Este longa duração foi muito bem recebido pela crítica e pelo público, atingindo em termos de vendas a marca de disco de ouro. Contentores, um dos singles dele extraído, rodava amiúde nas rádios, mas este single não tardou a ser seguido por muitos outros temas que o país inteiro passou a conhecer e a cantar: Não Sou o Único, N’América, Vida Malvada e Circo de Feras, a canção que dava nome ao álbum. Não podemos deixar de referir que as letras de Tim são profundamente originais, elaboradas sem perder de vista o que resta essencial, no meio da confusão de simulacros a que por vezes nos habituamos, porque os grandes problemas estão na rua. Por isso, no seu terceiro álbum, os Xutos & Pontapés sabem exorcizar todos os fantasmas, embora a vida vá torta e jamais se endireite. Se a vida é um circo de feras, a letra de Tim não o esclarece, deixando ao ouvinte a sua conclusão. Mas algo permanece sem sombra de dúvida: Circo de Feras é um dos mais importantes discos de rock da música portuguesa.

 


NESTA SECÇÃO

Duarte Costa, um mestre da guitarra quase esquecido

Acontece que no domínio das artes, seja na literatura, na pintura, na escultura ou na música...

Fumeiro e legumes cozidos qual é o resultado?

Com este tempo de chuva e cinzento só apetece comida quente de tacho como o cozido à portugu...

“A Quaresma do deserto não é negação da autoestima”

(…) A nossa Quaresma recorda, não apenas a história de Israel, mas também a história pessoal...