Tesouros da Música Portuguesa

João Pedro Matos

Recordar a Banda do Casaco

O grupo Banda do Casaco marcou indelevelmente o panorama musical português nas décadas de setenta e oitenta do século passado. A originalidade do seu som, uma fusão entre o rock progressivo e a música tradicional portuguesa, serviu de suporte para poemas de cunho surrealista, mordazes, plenos de crítica social. Sem fazer concessões a qualquer ideologia política, armadilha em que caíram muitos grupos da chamada música de intervenção, a Banda do Casaco teve sempre como principal valor o da liberdade criativa. Os seus limites eram as regras de um jogo musical que, por vezes, raiava o infantil. Parodiava com olhos de criança e dizia que o rei ia nu: ainda se lembram de Natação Obrigatória? Não admira que encontremos nos seus discos crianças a cantar, como nos temas Malfamagrifada ou Cantiga de Embalar Avozinhas, nem que a capa do disco Também Eu tenha a fotografia de uma criança.

Tal como os seus músicos gostavam de assumir, a Banda do Casaco não tinha emblema na lapela. Resistia, por isso, a qualquer comparação. A sua curta existência (somente dez anos) permitiu-lhe levar a cabo um manancial de experiências, nunca repetindo a fórmula de um disco para outro. Para tanto ajudou que o conjunto dos seus elementos nunca fosse o mesmo e mudasse de álbum para álbum. Passaram cerca de trinta músicos pela Banda do Casaco, músicos que se congregaram em redor António Pinho e Nuno Rodrigues, os seus principais mentores. Entre eles destacamos Carlos Zíngaro, Jerry Marotta, baterista da banda de Peter Gabriel, Celso de Carvalho, Luís Linhares, José Eduardo, Carlos Barreto, Tó Pinheiro da Silva, Zé Nabo. E as cantoras Cândida Branca Flor, Gabriela Schaaf, Concha e Mena Amaro, com especial destaque para Né Ladeiras que nos álbuns No Jardim da Celeste e Também Eu deu voz a pérolas de rara beleza, como são Argila de Luz, Ai se a Luzia e Salvé Maravilha. Foram assim cúmplices de um projeto que tinha como principal filosofia o encontro: primeiro, o encontro de músicos e, depois, o encontro entre o urbano e o rural, o pop e a vanguarda, a escrita criativa e a poesia de cunho popular, tudo filtrado por uma ideia de limpidez (Lavados, Lavados Sim) que os conduziria, no final, ao filão telúrico do canto tradicional, levando-os ao encontro de uma pastora de Penha Garcia, de seu nome Ti Chitas.

Vem isto a propósito da celebração dos quarenta anos da edição de um dos seus principais trabalhos, intitulado Hoje há Conquilhas, Amanhã não Sabemos. Trata-se de uma das jóias da música popular portuguesa onde Nuno Rodrigues faz um trabalho extraordinário de reescrita sobre o cancioneiro popular, dando-lhe um novo sentido: a leitura humorística em Geringonça (o relato de um encontro com um Ovni), tendo como fundo a moda da Senhora do Almortão, ou a denúncia da cegueira dos que mandam no mundo em Dez-Onze-Doze, sobre tema tradicional. Mas a faixa que desde logo se destaca é a intitulada País, Portugal, cuja letra já espelhava a desapontamento com o rumo que tomava o país, somente três anos após o 25 de Abril. Para além de Gabriela Schaaf na voz, participaram nesta canção Rão Kyao em Sax Tenor, Miguel Coelho no Violino, Carlos Barreto no Baixo e Tó Pinheiro da Silva na Guitarra.

Este álbum, cujas gravações de estúdio se perderam, mas que foi entretanto reeditado e se encontra outra vez disponível, tem uma atualidade espantosa pelo retrato desencantado que traça de um país mergulhado no desemprego e na precariedade, onde o futuro está longe de ser risonho. A mensagem parece assim não deixar dúvidas: o futuro não está em fórmulas já gastas, mas descobre-se e desenvolve-se no trabalho criativo, abrindo horizontes. E a Banda do Casaco pelo seu legado abriu novos horizontes na música portuguesa.


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