João Pedro Matos

Tesouros da música portuguesa

Vamos aos fados com Ana Moura

Desconhece-se qual a origem do fado: há quem diga que teve origem no lundum, uma dança brasileira, outrem aponta-lhe uma raiz mais remota que vai aos tempos da mourama e aos bairros típicos de Lisboa, onde ficou preservado em becos e vielas. Seja como for, o fado há muito que deixou de ser olhado como um género musical menor. Nem é já a canção nacional, fatalmente pobre. Não obstante em 2011 ter sido elevado à categoria de Património Imaterial da Humanidade, ainda assim não pode ser considerado como a canção nacional. Isto porque não existe uma única canção portuguesa, mas diversos filões em que enraízam várias tradições, tão ricas quanto os cantos populares que vivem na alma portuguesa.

Hoje assiste-se a uma mudança de rumo do fado, seja a nível da poesia, seja em termos musicais. E estão a ser editados álbuns que constituem uma viragem, na medida em que depois deles mais nada ficará igual. Um desses discos é Desfado de Ana Moura. Longe vai a comparação, mas ainda assim dizemos que Ana Moura, tal como Amália, veio acrescentar novidade à tradição: Porque Amália, a cantadeira, teve a coragem de interpretar os maiores poetas portugueses, o que na altura raiou o escândalo; Ana Moura porque não se contentou com a tradição purista do fado. Ambas arriscaram as suas carreiras, mas ganharam.

Alguns não gostam de Desfado. E não é para admirar. A própria capa do disco apresenta a fadista em vestido de alças, com cabelo curto e um sorriso aberto e luminoso. O fundo é azul e não negro, sem qualquer gravura ou desenho. Depois, Ana Moura faz-se acompanhar por instrumentos pouco ortodoxos ou pelo menos estranhos ao fado. Desde logo a começar por uma bateria; e também por um baixo e teclados. Mas a suprema heresia foi ousar cantar dois temas em inglês, interpretando A Case of You, de Joni Mitchell e Dream of Fire, este ultimo com a participação de Herbie Hancock, o lendário pianista de jazz que fez parte do quinteto de Miles Davis. A isto não é alheio o fato de o disco ter sido gravado nos Estados Unidos, mais concretamente em Hollywood, e ter sido produzido por Larry Klein, o qual já trabalhou com Joni Mitchell e Herbie Hancock.

Falámos em acrescentar novidade à tradição, o que não pode ser entendido como rutura, até porque o álbum anterior a Desfado, intitulado Leva-me aos Fados, anunciava já uma mudança no trajeto da fadista, mudança reforçada pela colaboração com os Rolling Stones e resultante do convívio com o multifacetado e genial artista conhecido por Prince. Leva-me aos Fados dava pistas para o futuro em Não é um Fado Normal, escrito por Amélia Muge e tendo como convidados Yuri Daniel e os Gaiteiros de Lisboa. Apontava um novo caminho em que se entrecruzavam outras músicas, saindo do fado puro para abraçar as linguagens do jazz e da música tradicional portuguesa.

Seguiu-se naturalmente Desfado que foi um estrondoso êxito de vendas e permaneceu no primeiro lugar de vendas durante muitas semanas. Também no estrangeiro, designadamente nos Estados Unidos, o público rendeu-se a Desfado, graças aos concertos que Ana Moura deu naquele país. E recebeu grandes elogios por parte da imprensa inglesa, tendo sido considerado em 2013 como disco do ano na categoria de música do mundo (World Music) pelo jornal inglês Sunday Times.

Talvez para alguns Desfado não passe de um conjunto de canções cantadas por uma fadista e escritas por gente estranha ao fado, como Luísa Sobral ou Pedro Abrunhosa; talvez para outros se trate mesmo de um disco de fados. A discussão parece irrelevante face ao contributo que Desfado trouxe para a própria tradição fadista, pois atualmente não faltam exemplos de intérpretes que seguem rumo semelhante. Ainda que não seja um fado normal.


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