Francisco Oliveira Simões (Historiador)

Crónicas do Passado

Uma caçada inglória

Eram horas de regressar a casa, o céu escurecia e deixava os cães inquietos. Ladravam e uivavam para o infinito celeste, numa busca por redenção. Descarreguei a carabina que me emprestaram, não queríamos usar armas contra um animal mitológico.

Convém explicar o que nos trouxe às altas montanhas da Escócia. Depois de recebermos uma missiva da Scotland Yard, a referir-se à nossa oferta ao Museu de História Natural como algo monstruoso e grotesco. Devo recordar, o caro leitor, da oferenda que cedemos ao tal museu, nada mais nada menos, que o próprio Javali de Erimanto, capturado por Hércules. O que os chocou mais foi termos enviado o animal vivo. Que bárbaros, parece que não gostam de seres vivos. Todos têm direito à vida, mesmo este suculento e velho suíno selvagem. Lançaram-nos a missão de o capturar e matar. Foi-nos dito que se escondera nas profundezas das florestas da Escócia.

Eu e o António (por esta altura os leitores devem pensar que só tenho amigos com o nome António na minha vida) caminhámos cuidadosamente, com a esperança de que não fosse necessário alvejar a excelsa criatura. Os pinheiros altos serviam de repouso, para acender uma fogueira e alimentar os canídeos. Estes espécimes eram mais indicados para a caça à raposa e ao coelho, mas foi o que se arranjou. Comemos manjares ingleses, ou seja, deu para encher a cova de um dente. De repente, ouvimos umas ramagens roçagarem, entendemos tratar-se do vento. Mas não era. Vimos um caçador de traje antigo e chapéu de raposa.

- Desculpem-me, caros senhores, posso juntar-me no vosso repasto?

- Com toda a certeza. Como se chama? – perguntei surpreendido.

- Sou o Ivan Turguéniev, escritor russo e caçador inveterado.

- Chamo-me Francisco, mas não compartilho consigo a paixão pela caça. Estou obrigado a prestar este serviço.

- Sou o António, mais habituado a estas lides campestres e à arte gráfica em geral.

- Têm aqui uns cães muito interessantes. Gosto especialmente deste, – apontava Ivan para o Jack Russell Terrier– de que raça é?

- Sou o Sir William H. Stuart, caçador e nobre inglês – respondia o cão usurpador, revelando a sua identidade real.

- Como é possível enganar-nos a todos outra vez? Rua, seu falsário! – respondi.

- Tecnicamente, estamos todos na rua, mas eu vou bater em retirada, pode ficar descansado. Hei de capturar esse javali antes de vocês – prometia o nobre com um sorriso escarninho.

Ivan achou toda aquela história rocambolesca. Não demorou muito a zarpar da nossa companhia. Dormimos e acordámos na manhã seguinte com uma coruja a piar à beira do meu leito. Trazia uma carta lacrada, convidando-nos para um almoço. Seguimos a morada muito pouco clara, devo confessar. Não foi difícil dar com o castelo, pois, tratava-se da Escola a que me candidatei no ano passado. Entrei nas enormes portas de madeira com um misto de satisfação e pavor, sabia lá que conversa me iam fazer.

Descobri, por entre todos aqueles estudantes trajados, que o animal fora recebido no seio da instituição e guardaria uma câmara secreta qualquer, pelo menos foi o que me disse um rapaz. Trazia sempre o seu moleskine, como um bom hipster que era. Mas cometeu o erro fulcral de se esquecer do caderno. Eu ainda o avisei, mas não me deu ouvidos. Acabei por dar a uma rapariga ruiva qualquer, pode ser que o devolva ao seu remetente.

- Então, esse foi o resultado da vossa missão?

- Foi…

- Muito bem, ficamos mais descansados. Podem sair em liberdade, já não devem nada à Scotland Yard.

Logo que saíram da sala de interrogatório, esta foi a conversa que se seguiu:

- Eles não estão nada bem da cabeça.

- Falou com um russo do século XIX e esteve numa escola medieval.

- Ainda para mais, proclamam que o javali é mitológico e que se deve preservar.

- Perderam o juízo.

Regressámos a Portugal com a perspetiva de dever cumprido e de cabeça erguida.


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