João Pedro Matos

Tesouros da Música Portuguesa

Um disco capaz de quebrar o tédio

O tédio (a melancolia ou a tristeza pensativa) foi representado pelo poeta francês Charles Baudelaire através do termo Spleen. Nos seus poemas reunidos sob o título Leus Fleurs du Mal, podemos encontrar os conceitos de Spleen e de Ideal: à semelhança de Antero de Quental, também em Baudelaire o Ideal, quase sempre inatingível, é obscurecido pelo vazio do tédio, uma espécie de sombra que devora o sonho. Ora, quando os Rádio Macau em 1986 decidiram chamar Spleen ao seu álbum mais conseguido, fizeram-no com plena consciência do que este termo significava, ao ponto de citarem a obra do poeta francês, designando a parte de Spleen e Ideal intitulada O Gato. A verdade é que a poesia e a obra poética de grandes vultos universais nunca foi estranha aos Rádio Macau: na sua génese, esteve a influência dos poetas da chamada Beat Generation, tais como William Burroughs, Allen Ginsberg ou Jack Kerouac. Precisamente, o segundo tema do álbum menciona William Burroughs. Mas também podemos encontrar referências a obras de Filosofia (é preciso não esquecer que Xana estudou Filosofia) ou ao próprio cinema: o quarto tema do álbum, Lua Assassina, tem presente o universo dos filmes de série B e, mais concretamente, o cinema policial.

Para além das letras, da autoria de Pedro Malaquias e de Vitinha, Spleen vale desde logo pela produção arrojada a cargo de Carlos Maria Trindade, na altura teclista dos Heróis do Mar e que, mais tarde, viria a integrar os Madredeus. Carlos Maria Trindade produziria também Circo de Feras, dos Xutos e Pontapés e os dois primeiros álbuns dos Delfins. Neste disco, descobrimos arranjos sofisticados, como são os arranjos para o violino de Fernando Galazans, ou para o violoncelo de João Murcho na faixa de abertura, intitulada Há Dias Assim; ou os arranjos para piano e cravo de Luís Filipe Valentim na faixa que dá nome ao disco, Spleen. Aliás, o disco contém dois pequenos instrumentais que são duas autênticas pérolas: Spleen Nº 2 e Spleen Nº 3; o primeiro, um solo de piano de Luís Filipe Valentim e, o segundo, uma composição da autoria de Flak que conta com os sintetizadores de Carlos Maria Trindade.

Mas, quem foram os Rádio Macau? Na sua formação entrava Xana, como vocalista, se bem que no início da banda era Vitinha quem cantava; entrava ainda Flak, na guitarra, Filipe Valentim, nos teclados, Alex, no baixo, Ricardo Frutuoso, também em guitarra e Samuel Palitos, na bateria. Editaram em 1984 o seu primeiro álbum, com o nome de Rádio Macau. Neste disco, a canção Bom Dia Lisboa destacou-se rapidamente e tornou-se um êxito na rádio. Sucedeu-lhe, dois anos depois, o álbum Spleen e, em 1987, O Elevador da Glória. Este tornou-se o seu disco mais vendido, muito graças à canção O Anzol, a qual se aproximava perigosamente do som pop-rock da banda britânica The Cure. A mesma sonoridade continuou a ser explorada em O Rapaz do Trapézio Voador, álbum datado de 1989, antes de haver uma evolução da sua música, evolução presente em A Marca Amarela de 1992. Mais uma vez, o grupo procurou inspiração na poesia dos grandes autores, agora tendo como referência Alexandre O’ Neill. A Marca Amarela utiliza também gravações de músicas tradicionais do mundo, como em O Buda Zarolho, onde é usada uma gravação da Raga Sindhi Bhairavi. Destacam-se ainda as faixas Logo se Vê e O Hábito Faz o Monstro, esta última porque recebeu honras de intensa divulgação radiofónica.

Seguiu-se um interregno de quase oito anos, antes da edição em 2000 de Onde o Tempo Faz a Curva. Contudo, os músicos que integravam a formação dos Rádio Macau já estavam envolvidos nas suas próprias carreiras a solo e faltava tempo e, certamente, disposição para recomeçar um projeto que já havia conhecido o seu apogeu. Portanto, ficaram na memória os discos lançados na década de oitenta do século passado e, em especial, Spleen, discos que constituem um valioso espólio dessa década.

 

 


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