Francisco Oliveira Simões (Historiador)
Crónicas do Passado
A revolução editorial - entrevista com Hugo Xavier
No ano de 2015 presenciámos uma mudança no paradigma editorial português, com o aparecimento da editora E-Primatur. Assim começou o sistema de crowdfunding aplicado aos livros em Portugal. A paixão de dois editores por publicar obras desconhecidas do grande publico, aliada à falta de financiamento, levou a que os leitores fossem os próprios mecenas desses livros. O projeto tornou-se num sucesso retumbante e está espelhado em cada livraria deste país, através do design inteligente das capas e da qualidade de impressão. A primeira vez que vi um livro desta editora compreendi que algo de extraordinário estava a acontecer.
A E-Primatur deu origem a duas outras chancelas, a BookBuilders, dedicada a História, Política e a novos autores, e a Livros B, focada na ficção mais olvidada dos portugueses.
O facto desta plataforma ter sido criada por leitores ávidos, preocupados com todas as vertentes que compõem a produção livreira, reflete-se bem quando folheamos os seus tomos. Qualquer obra nas suas mãos torna-se instantaneamente num objeto artístico. Podia referir os vários autores que publicaram e que estão a ter grande visibilidade, mas são tantos que não caberiam neste jornal.
Sabendo de todo este épico, convidei o editor Hugo Xavier, que criou a E-Primatur juntamente com Pedro Bernardo, para nos revelar mais sobre o contributo marcante do seu trabalho no panorama editorial português, confessando-me como admirador do catálogo que construíram.
Como teve a ideia de fundar a editora E-Primatur?
A ideia deste novo projeto veio curiosamente de desilusões editoriais. O meu processo começou numa pequena editora, como assistente editorial, logo quando saí da faculdade. Depois, criei a Cavalo de Ferro com uma pessoa que conheci nessa editora, que foi um projeto que me deu muitas alegrias. Entretanto, chegou aquele momento em que é preciso mais investimento para crescer. E, como nenhum de nós tinha investimento para esse crescimento, durante algum tempo existiu um sobrecarregamento de trabalho. Em 2008 apanhámos com a crise económica, que fez cair as vendas cerca de 30%, que nos pôs numa situação muito complicada. Eu acabei por sair em 2009, porque o meu sócio tinha uma ideia de continuação da editora diferente da minha. Saí com a consciência de que muitas vezes este é o grande problema dos pequenos projetos individuais, a capacidade de crescimento economicamente estável é sempre complexa. Em 2010 consigo entrar para o grupo Babel através de um convite. Neste grupo tive a experiência inversa, onde trabalhava por conta de outrem num projeto editorial, que supostamente tinha uma dimensão maior do que aquilo que na realidade teve. Portanto, foram duas experiências diametralmente opostas. Eu acabo por sair da Babel no final de 2011 com outros editores por questões financeiras do grupo editorial. Tive um período de meditação de quase quatro anos, no final de 2011 até ao final de 2015, em que me encontrei com várias pessoas que queriam fazer projetos editoriais. Fui falando com o Pedro Bernardo, que estava na altura a sair do grupo Almedina, onde trabalhava desde os anos 90. Nós sentimos que num grande grupo podemos fazer mais coisas do que queremos fazer, mas depois vamos constantemente sendo desiludidos por uma espécie de sabotagem não intencional dentro da própria empresa onde estamos. O desafio que tínhamos em 2015 era construir um projeto em que houvesse um sistema financeiro que permitisse um crescimento sustentado, mas onde nós conseguíssemos manter o controlo sobre aquilo que estávamos a fazer.
Quais foram as inspirações para criarem este novo projeto editorial?
Olhei para muito do que se fazia lá fora, em termos de novos projetos, como a Pushkin Press, uma editora inglesa que tem uma coleção feita por regime de subscrição. Depois encontrei outra editora inglesa, a & Other Stories, que funciona por crowdfunding, mas associada a grupos de leitura. Nos EUA também havia outra editora que funcionava com um sistema de crowdfunding mais próximo do nosso. Portanto, a junção de várias destas ideias passou pelo reconhecimento que teríamos de adotar um processo incomum em Portugal, no que respeita à cultura. Do nosso lado havia a consciência que isto demoraria até que tivesse algum reconhecimento. Sabíamos que os que contribuíssem para o projeto iam começar a promovê-lo. Porque nós, os leitores, movemo-nos por afinidades, nós conhecemos pessoas que têm gostos semelhantes aos nossos. Portanto, tinha de ser esse o caminho.
Que benefícios traz o crowdfunding para a E-Primatur?
O crowdfunding serviu para dois propósitos: ter um certo apoio financeiro; e maior circulação de informação acerca dos livros. Passado um ano, um amigo meu que trabalhava na Fnac dizia-me que cada livro nosso que chegava ao mercado tinha um impacto que nenhum livro, mesmo das grandes editoras, tinha. Parecia que toda a gente estava à espera dele. Isto significava que a informação tinha circulado. Além de termos um reconhecimento do mercado em termos de vendas, como conseguimos algo inédito, uma nova editora, com apenas sete livros publicados no primeiro ano, com três livros eleitos por várias publicações como melhores do ano. O que quer dizer que criámos uma certa expetativa nos livros que tínhamos publicado. A forma de comunicar com o público era através de uma imagem de coesão ou conceito visual, para mantermos a mesma identidade.
Foram a primeira editora a traduzir diretamente do Árabe para o português “As Mil e Uma Noites”. Sente que têm um papel revolucionário na indústria livreira em Portugal?
É um bichinho de leitor. Desde que comecei a ler costumava ver traduções feitas a partir de outras traduções de outras línguas. Sobretudo, porque nós sabemos muito bem, que não só perdemos coisas, como há tradutores que inventam. Isso acontecia muito na história da tradução em França. Aliás recentemente houve um interregno grande na publicação das obras de Haruki Murakami para francês, porque o autor percebeu que os tradutores faziam acrescentos e cortes nas suas obras, por isso proibiu a sua tradução durante onze anos. Como leitor eu sabia que havia muito a fazer nessa área, custava-me muito estar a ler grandes obras que não eram traduzidas do original. Lembro-me de ter comprado em alfarrabistas as obras do Prémio Nobel sueco Pär Lagerkvist, que tinham saído na Editorial Estúdios Cor nos anos 60 e 70, que dizia na ficha técnica que tinha sido traduzido do original sueco por José Saramago, que não sabia sueco. Sempre me incomodou esta questão e pensava que se um dia fosse editor o que podia fazer para contornar isto. Seria assim tão difícil encontrar tradutores das línguas originais? Nalguns casos é mesmo. Sempre que há a possibilidade de fazer a tradução do original, ela deve ser feita. Na maior parte das traduções até conseguimos muitas vezes apoios das embaixadas e de outras instituições. No caso recente de “As Mil e Uma Noites” e noutras traduções, pus em prática um projeto antigo que eu tinha, que era fazer um sistema misto de pagamento, pagando uma verba mais baixa do que o normal, mas depois pagamos uma percentagem de venda da obra. Os tradutores já receberam mais dinheiro com as suas traduções do que se tivessem recebido o valor equivalente ao que seria normal. Quando eu cheguei à Cavalo de Ferro o objetivo era traduzir tudo o que podíamos do original. Fizemos a primeira tradução literária do japonês para português nos mais de 500 anos que temos de ligação com o Japão, só havendo um tradutor em Portugal, o Professor António Barrento, da FLUL. Também traduzimos do checo, do russo, do servo-croata, do búlgaro, do romeno, chinês, línguas escandinavas, entre outras. Obviamente que quis continuar esta identidade na E-Primatur. Nesta linha traduzimos August Strindberg, Selma Lagerlöf, Nikolai Gogol e muitos outros autores. Confesso que me orgulho de saber que foi muito devido ao papel da Cavalo de Ferro que as outras editoras começaram a fazer traduções do original. Houve uma mudança de mentalidades.
Hoje em dia há muitas editoras a publicar os mesmos livros, como recentemente se tem visto com as obras “1984” e “Quinta dos Animais”, de George Orwell. Sei que vos aconteceu algo parecido quando editaram a imortal obra de T. E. Lawrence, “Os Sete Pilares da Terra”. Existem autores muito desconhecidos do público português e a E-Primatur tem feito um trabalho louvável ao descortinar nomes tão sonantes como August Strindberg ou Mikail Bulgakov. Como vê esta falta de originalidade do mundo editorial? Lanço também as sugestões de publicação das obras P. G. Wodehouse e Evelyn Waugh.
Sim, mas é também um reflexo da falta de cultura dos nossos leitores. Ou seja, se eu fosse cumprir o meu objetivo primário como editor, só publicava autores desconhecidos em Portugal. Era o meu sonho. Porque somos um negócio, temos de sobreviver financeiramente. Como nós temos um público leitor que só lê os títulos que conhece, temos de conciliar nomes conhecidos e desconhecidos, para que o leitor se sinta à vontade para confiar nas palavras e escolhas do editor. A E-Primatur tenta ter um catálogo equilibrado para chegar aos vários leitores. Faz parte do meu trabalho fazer listas de autores que quero publicar, Evelyn Waugh está lá e é perfeitamente possível publicar o P. G. Wodehouse.
A BookBuilders costuma editar novos autores. Como os descobrem? Quando é que que vão publicar poesia?
Tivemos uma proposta de um colaborador nosso, que está ligado à poesia durante muitos anos e que é poeta, para nos apresentar uma chancela de poesia. Neste momento estamos a contemplar esta perspetiva, mas ainda estamos à espera de dados mais concretos. A BookBuilders está aberta para aceitar novos autores e projetos. Nós reduzimos o número de originais que aceitamos por ano, porque não conseguimos fazer o acompanhamento que os novos autores merecem, como as grandes editoras fazem. Existe muita gente cheia de qualidade em Portugal, mas infelizmente não temos a capacidade para os projetar. Adorava publicar mais do que se tem escrito.
O panorama editorial afirma no geral que os livros de contos não têm mercado. Mas o vosso catálogo demonstra exatamente o oposto. Qual a importância da ficção curta no mercado editorial?
Esse é um mito editorial, que também está na mente de alguns dos compradores das grandes livrarias. Um bom livro de contos, bem trabalhado, vai vender tanto como um romance. A ideia dos contos interligados, que unifique a narrativa pela época ou tema, no espírito de “As Mil e Uma Noites” ou o “Manuscrito Encontrado em Saragoça”, terá sempre mais sucesso.
A publicação de “História do Declínio e Queda do Império Romano”, de Edward Gibbon, está a granjear um enorme sucesso entre os leitores. Para quando a edição de livros de História de autores portugueses?
Isso é algo que começamos a fazer. No ano passado publicámos um livro “Uma História da ETA”, do investigador Diogo Noivo. Existe uma desatualização da nossa academia relativamente à realidade do mercado e à realidade internacional. Desde há muitos anos que os mercado de língua inglesa e francesa dominam a publicação de História, sempre dirigida ao grande público, com uma escrita apelativa. Faltam mais publicações sobre a nossa História e biografias de personalidades portuguesa ainda desconhecidas.
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