João Pedro Matos
Tesouros da Música Portuguesa
Quarenta anos depois, entre Vénus e Marte
E se houvesse um disco português que tivesse sido considerado, dentro do seu género, um dos melhores de todos os tempos? E se esse álbum fosse um dos escolhidos pela crítica internacional, e estivesse a par de trabalhos de nomes como os King Crimson, Genesis ou os Pink Floyd? Pois esse álbum existe mesmo. Chama-se 10000 Anos Depois Entre Vénus e Marte e pertence a José Cid. A poucas semanas de completar-se quarenta anos sobre a sua edição, convém recordar um dos álbuns seminais do rock progressivo ou rock sinfónico português. E não se pense que foi o único no panorama musical nacional. Não podemos esquecer os Petrus Castrus ou os Tantra que, com a publicação respetivamente de Mestre e Mistérios e Maravilhas, abanaram as fundações culturais do país na década de setenta do século passado. Contudo, o de maior importância e pela projeção que teve, foi o de José Cid. Considerado pela revista norte-americana Billboard como um dos principais álbuns de rock progressivo de sempre, e sendo presença assídua nessa lista, 10000 Anos Depois tem uma espantosa atualidade. Estruturado como uma ópera rock, o libreto descreve-nos um mundo devastado pela guerra e por catástrofes ambientais, num planeta próximo da destruição global. A letra de O Último Dia na Terra canta que, entre guerras e poluição, o planeta Terra já não pode mais viver. E o tema Fuga Para o Espaço diz “Vem amiga (…) não olhes para trás, já toda a Terra arde”. É preciso abandonar este mundo e partir numa viagem pelo céu, onde descobrem Mellotron, o planeta fantástico. Enfim, decorrem 10000 anos e entre Vénus e Marte há um planeta à espera de ser redescoberto. Então, um homem e uma mulher regressam à Terra para recomeçar tudo, a partir do zero.
A incursão de José Cid pelos territórios do rock principiou na década de sessenta do século vinte e teve a sua coroa de glória com o Quarteto 1111, o que faz dele um dos precursores do género. Em 1967 a faixa A Lenda de El-Rei D. Sebastião conheceu enorme divulgação na rádio, o que tornou este tema uma espécie de bandeira da música em Portugal. Ainda recentemente o trabalho do grupo foi reconhecido pelo norte-americano Jay-Z que, no seu álbum 4:44, incluiu uma gravação (sampler) do tema Todo o Mundo e Ninguém, editado em 1970 pelo Quarteto 1111. Nem se julgue que 10000 Anos Depois constituiu a única incursão no domínio da antecipação científica por José Cid. Porque no seu primeiro álbum solo, datado de 1971, encontramos uma faixa intitulada Lisboa Ano 3000 que descreve uma cidade do futuro edificada nas profundezas do oceano. Musicalmente, tem arranjos arrojados para a época, recorrendo ao uso da eletrónica. Também em 10000 Anos Depois José Cid utiliza o mellotron, teclado eletromecânico que se posiciona para tocar sons pré-gravados, e sintetizadores, incluindo o Moog. Faz-se acompanhar por Zé Nabo e Mike Sargeant que estão exuberantes na execução de viola solo, viola acústica e de doze cordas. Por seu turno, Ramon Galarza tem a seu cargo a percussão.
José Cid está longe de ser uma figura consensual. Mas, quer se goste ou não, a realidade é que faz parte dos anais da história da música em Portugal no século vinte. Tocou todos os géneros, desde o jazz ao rock, da música ligeira ao fado, sendo difícil acompanhar o trajeto que percorreu ao longo de mais de cinco décadas. O álbum que este mês apresentamos é mais um marco histórico que pertence à veia criativa e sempre inconformista de José Cid.
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