Manuela Vidigal Bertão
Especialista em Medicina Interna
Precisamos acabar com o medo de viver
(…) quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar para poder vê-las assim.
A arte de ser feliz, de Cecília Meireles
Não poucas vezes, talvez a mais delas, em muitas situações da nossa sociedade pós-moderna e pós-capitalista, vivemos uma permanente conspiração do silêncio em relação aos Cuidados Paliativos. Paliativo deriva do latim pallium que era o nome do manto usado pelos cavaleiros das Cruzadas para se protegerem das intempéries. Os Cuidados Paliativos têm este propósito fundamental, o de proteger, amparar, cuidar integralmente da pessoa e da sua família ao longo de todo o caminho novo que se abre quando há o diagnóstico de uma doença grave, incurável, progressiva e que, em anos a dias, pode levar à morte. Este acompanhamento abrange todas as dimensões da pessoa humana, desde o corpo que dói, às emoções que sentem, à família que amam, e à alma que sofre.
Algumas correntes defendem a mudança da designação de “Cuidados Paliativos” para outras alternativas mais redutoras e eufemísticas, que desenraízam estes cuidados do seu valor histórico e simbólico, na esperança que haja maior “aceitação” por parte da comunidade e dos próprios profissionais de saúde. Num tempo que se defende secular, vivemos de outros dogmas e atormentados por outros tabus que reconhecemos como normoses e, assim, nos impedem de sermos mais. Queremos fugir e ignorar a morte, o sofrimento, a intimidade, a espiritualidade; infantilizamo-nos em lugar de nos convocarmos para o crescimento; planificamo-nos em lugar de nos aprofundarmos. Porquê não acreditar no poeta e mudar os homens usando borboletas?
As pessoas que acompanhamos em Cuidados Paliativos são mestres e mostram-nos que o caminho para se ser inteiro não é fugir das questões fundamentais da vida, mas abraçá-las. Mostram-nos que querem ser cuidadas por uma medicina baseada na evidência e baseada na relação humana. Mostram-nos que a verdade e o afecto são essenciais para cuidarmos delas. Mostram-nos que é preciso encontrar o extraordinário no ordinário, porque o quotidiano é o grande tesouro. Mostram-nos que não é a morte que as atormenta, mas a vida mal vivida. Mostram-nos que apesar de, o valor superlativo da bondade, da gratidão e do amor são perenes. Mostram-nos que as regras podem ser reinventadas. Mostram-nos que o tempo é presente. Mostram-nos que a doença não é um impasse, mas uma travessia para mergulhar em novas dimensões de si mesmas. Mostram-nos que a vida é uma dádiva e um dom.
Embora os Cuidados Paliativos sejam associados à morte, a área principal do nosso cuidado é a Vida. Não tenhamos medo de olhar para nós e para os nossos e perceber como queremos realmente viver. Não tenhamos medo de ser mais verdadeiros, mais inteiros, mais humanos. O último apelo é o de conseguirmos fazer de Portugal um lugar onde as pessoas aprendam a ver as felicidades certas, isto é, um lugar onde não haja medo de viver.
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