João Pedro Matos
Tesouros da Música Portuguesa
A peregrinação de Dulce Pontes
Se a existência neste mundo é a nossa maior peregrinação, o novo disco de Dulce Pontes pode servir de alento nessa caminhada, para quem o ouvir com atenção. Não é necessariamente uma viagem por países longínquos, nem se baseia na obra de Fernão Mendes Pinto, pois esse trabalho já foi feito. Talvez tenha esse nome porque são muitas as voltas que já conheceu o percurso musical de Dulce Pontes, e o seu novo disco, trabalho maior da música portuguesa, vai ainda mais longe. Assumindo-se cada vez mais como cantora do mundo, transpõe fronteiras geográficas e de género musical, enraizando quer na tradição popular, quer na música clássica.
O que não surpreende, depois de ter alcançado a consagração internacional, designadamente pela mão do compositor e maestro Ennio Morricone. Dulce Pontes lança- se agora por caminhos e lugares que vão de Portugal, passando por Espanha até à América Latina. Trata-se de um álbum duplo. Começamos a audição pelo segundo disco, intitulado “Puertos de Abrigo”.
Ouve-se o andamento “Astúrias”, retirado da Suite Espanhola de Isaac Albeniz, compositor catalão que foi também músico do mundo, e que deu concertos por toda a Espanha e em diversos países da América do Sul. Virão então a propósito dois temas do mesmo disco, “Maria de Buenos Aires” e “Vamos Niña”, do criador do Novo Tango, Astor Piazzolla. Além do famoso “Volver” de Carlos Gardel, o qual tem como acompanhamento guitarra portuguesa. Apesar desta incursão por terras da Argentina, nunca se afasta do mar, como nos anunciam as faixas “Alfonsina y el Mar” e “Ay Ondas que eu Vin Veer”. Nem tão pouco da música tradicional portuguesa, herança sempre presente.
A abertura do primeiro disco cabe à Orquestra Roma Sinfonietta que, outra vez com guitarra portuguesa, grava ao vivo o andamento lento do Concerto de Aranjues, de Joaquim Rodrigo. Com nítida influência do musicógrafo Filipe Pedrell, esta é a composição mais famosa de toda a música espanhola, aqui contando com o belíssimo poema de Dulce Pontes. Segue-se “O Grito”, talvez o mais pungente fado de Amália Rodrigues.


Segundo Fernando Pessoa, existiria um espírito português criador de mitos, psique que cumpriria o espírito vindouro que seria a época da Fraternidade Universal. Um Quinto Império que se teria revelado através dos descobrimentos, mas que seria essencialmente espiritual. A autêntica identidade nacional tornara-se assim universalista, quando abriu novos mundos à Europa. Talvez não seja por acaso que o álbum conta com dois poemas de Fernando Pessoa, “Cancioneiro” e “Nevoeiro”, este último extraído da obra poética “Mensagem”. Há aqui todo um encantamento em torno do maior mito nacional, o mito do Encoberto, do rei D. Sebastião que há-de numa manhã regressar.
“Nevoeiro” teve honras de ser o tema de apresentação do álbum, contando mesmo com um teledisco. Regressamos a Lisboa e ao fado, com “Alfama” de Alain Oulman e letra de Ary dos Santos: “Alfama cheira a saudade”. Dir-se- -ia que é o regresso a casa depois de todo o caminho percorrido. Puro engano. A viagem termina no Minho, nuns “Bailados do Minho” de ritmo desenfreado, com música de Artur Paredes e letra de Dulce Pontes. Isto depois de ter visitado a Beira Baixa em “Vá de Retro” (composição da autoria da própria Dulce Pontes) e percorrido a planície alentejana em “Grândola”, cantada em tom de oração.
E esta viagem não tem fim, para quem ousar voltar a ouvir o segundo disco, viagem por mundos que se recriam e que transversalmente se influenciam. O interior do álbum tem o desenho de uma vieira, a concha que os romeiros ostentam, mormente os que vão a Santiago de Compostela.
Nesta peregrinação musical, se existe uma justa recompensa, ela não se encontra no lugar a que se chega, mas no caminho repleto de maravilhas. Resta- nos a nós dar graças e louvores por este excelente trabalho.
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