João Pedro Matos

Tesouros da Música Portuguesa

Pelas ondas até ao cabo do mundo

Os Vai de Roda são sinónimo de excelência no âmbito da música popular portuguesa. E dificilmente encontramos melhor exemplo dessa excelência do que em Polas Ondas, o seu álbum de 1996.

O terceiro registo de originais do grupo liderado por Tentúgal, não sendo uma recolha literal de acervo de música tradicional, mergulha as suas raízes na cultura popular do norte do país. Também não perde de vista a Galiza, porque remotamente, nos meados do século XI, as terras confinantes ao rio Minho e a Galiza foram um e mesmo território. Talvez por isso este álbum esteja carregado de História, trilhando musicalmente os caminhos de Santiago.

Mas o segredo deste disco reside em reinventar a tradição, com uma sofisticação que o diferencia dos demais discos do seu género, começando logo na própria embalagem que o envolve. Vem dentro de uma espécie de envelope que se desdobra em quatro cartolinas, quantas as partes que o constituem: Terra de Lumieiras, Terra de Vento Verde, Terra de Urze e Terra de Sal.

O álbum abre com o som do oceano, com o marulhar da vastidão que invoca o canto que se diz, primeiro numa poesia de Afonso X, rei Fernandes de Santiago, depois no canto da guitarra portuguesa numa contradança do século XVIII.

Na sequência de Polas Ondas II, chega o instrumental Finis Terrae que tanto recorda o mítico cabo da província da Corunha, Espanha, como uma antiga região da Bretanha, em França. E é impressionante a quantidade e variedade de instrumentos utilizados em Finis Terrae: guitarra elétrica, braguesa, sintetizador, pratos, violino, violoncelo, gaita de foles, harpa, carrilhão, sanfona; Rosa das Rosas, outro poema de Afonso X, é acompanhado com pote cerâmico, pandeiro, címbalos, vozes masculinas e voz solista, além de muitos instrumentos que já tínhamos encontrado em Finis Terrae. O que vem atestar a capacidade de recriação da tradição por parte dos Vai de Roda, quando estabelecem um diálogo sem qualquer conflito entre os instrumentos de cariz popular, os de origem erudita (como o violino e o violoncelo) e os contemporâneos como são a guitarra elétrica e o sintetizador. E a aguarela de cores e matizes tão diferentes continua com traço seguro de Tentúgal e os seus acompanhantes, pintando a Terra de Vento Verde e depois a Terra de Urze, com paisagens do Minho, da Galiza, de Trás-os-Montes, da Madeira.

São sonoridades que podemos escutar em temas como Floripes na Terra Chã, La Lhoba Parda, Senhora da Granja e Nana para “Ingalhar” Meninas. Mas é em Terra de Sal, a quarta e última parte do disco, que descobrimos os dois temas maiores deste magnífico trabalho: o primeiro, um instrumental que tem como título Cavalos de Fão, recebeu o nome dos rochedos existentes na costa nortenha e que constituem perigosos escolhos para os navegantes. Aí, a guitarra portuguesa é rainha, num ambiente profundamente nostálgico ajudado a construir pelo violino, o acordeão e a gaita de foles.

O segundo, A Roupa do Marinheiro, aparece como um tradicional minhoto interpretado de forma sublime por Uxía e que conta, mais uma vez, com a guitarra portuguesa de Eduardo Coelho. O álbum encerra como começou, com o bater das vagas de um oceano que se fecha em nevoeiro, atrás de um qualquer penedo, adensando o mistério.

Além ficam ilhas perdidas, rodeadas de insondáveis profundezas que se estendem até ao cabo das tormentas. Escondido na névoa, como um sonho, o cabo do fim do mundo onde termina a jornada, relatada num texto galaico-português e em Gil Vicente. Quase perfeito, não surpreende que alguma imprensa o tenha considerado como o melhor álbum de música portuguesa em 1997.


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