Francisco Oliveira Simões (Historiador)
Crónicas do Passado
O mistério de John Constable
A claridade rareava pelas ruas enegrecidas de Londres, suplicando crimes e vultos malsins, apesar do meu relógio bater os ponteiros nas 16H30. Passado um ano voltei à capital britânica, com o meu amigo violinista, António. Nessa tarde já o dia havia sido longo. Visitámos a Apsley House, onde morou Arthur Wellesley, Duque de Wellington, um autêntico assombro de obras de arte e salões amplos. Portugal ressaltava por entre a baixela de Domingos Sequeira e o enorme retrato de D. João VI. Foi, justamente, nesse fim de tarde que decidimos visitar a National Gallery, que tem o magnifico condão de nos surpreender eternamente. Estava ansioso por rever os esplendorosos quadros paisagísticos de John Constable.
Voltei a contemplar pinturas da nossa História universal, fiz a devida vénia aos embaixadores e a toda a família de Van Eyck. Quando cheguei à sala de paredes verdes adamascadas, fiquei estático por ver tamanha beleza. Constable e Turner disputavam a minha atenção. Mas bastaram segundos para me aperceber da desgraça lancinante que se passava naquele templo artístico. Enquanto um grupo de turistas admirava uma parede despida, vazia de obras pictóricas, contendo apenas a legenda no lado inferior direito “The Cenotaph to Reynold´s Memory, Coleorton, John Constable, 1833”. Nesse quadro podemos admirar um veado junto a um memorial de pedra, no centro de uma clareia florestal, numa digna homenagem ao pintor Sir. Joshua Reynolds (1723-1792).
- Esta obra extraordinária reflete bem a ausência do seu autor, o vazio interior deixado pelas marcas da vida – explicava com muita prosápia e ignorância o guia que acompanhava aquele grupo.
Este óleo é só um dos mais brilhantes trabalhos de Constable, como é possível ter desaparecido? Tínhamos que atuar com a maior brevidade. Como no ano passado compreendemos que o caso não seria resolvido com inquéritos infrutíferos, tomámos medidas mais drásticas. Delimitámos o perímetro e estávamos atentos a visitantes com bagagens de volume anormal, porque claramente tinham escondido o quadro, que não é lá muito pequeno. Não queria que reparassem na minha vistoria, por isso, tratei de ir falando descontraidamente com os suspeitos.
- Boa tarde, caro visitante! Costumo vir aqui muitas vezes contemplar arte?
- Nem por isso, talvez nem venha cá mais.
- Isso quer dizer que vai fugir? Será porque leva um quadro muito valioso nessa mala de tamanho absurdo?
Escusado será dizer que achou estranha a minha atitude e desandou. Mas fiquem descansados, os funcionários do museu estão ao corrente. Esses são outros que se marimbaram para o nosso aviso, dizendo que era habitual os quadros serem retirados para restauro. A mim não me enganavam eles.
Foi nesse momento que tive uma ideia. Pedi ao António que tocasse violino para distrair os visitantes, enquanto eu ficava a reparar nas atitudes que cada pessoa naquela sala tomava. As paredes começaram a ecoar Vivaldi, as cordas vibravam a verdade e a justiça, que se descobriria pela mão de tão afinado violino. Senti uma atenção desmesurada do público, olhos pregados na melodia. Apenas um rapaz de olhar furtivo, cabelo escuro e mente desalinhada, se apressava por sair dali, aproveitando a confusão gerado por Vivaldi. Corri atrás desse malévolo ser. As passadas cada vez mais rápidas, alardeei toda a gente, mas a defesa da História da Arte é mais importante que figuras tristes. Quando, por fim, me lancei em voo contra o meu opositor, ele caiu retumbante no chão gélido.
- Onde está o quadro de John Constable?
- Deixe-me em paz! Esse óleo foi levado para restauro.
Comecei a reconhecer a fisionomia do criminoso, fora o mesmo que matou a rena do Museu de História Natural, no ano passado. E agora tentava ocultar um quadro com um veado. Levantei o facínora e levei-o para uma sala. O interrogatório começou.
- Como se chama?
- Nicholas Craven, curador da National Gallery.
- Porque matou a rena e roubou um quadro de John Constable?
- Eu sou um simples funcionário de museu. Já no ano passado tinha dito isso.
- Subiu na carreira, bem vejo. Tudo à conta de mentiras e moscambilhas. O que tem contra os cervídeos em geral?
- Nada, eu só faço o meu dever.
Chamei a Scotland Yard, que chegou prontamente. Agradeceram os altos serviços prestados. Depois colocámos a pintura de Constable no sitio que lhe era merecido. As autoridades pediram para me tirar um retrato à frente da tão resplandecente obra de arte, afirmando que queriam guardar uma recordação minha, para se lembrarem do responsável por toda aquela operação. Informaram-me que, caso queira voltar a Londres, tenho de lhes reportar essa minha decisão, deve ser certamente para tomarmos um copo nesses pubs pitorescos. Nicholas Craven ficará muitos anos atrás das grades.
No interior do escritório do curador, vemos sentado à secretária, Nicholas.
- Como é que eles perceberam a minha relação antagónica com os cervídeos? Não escondo que os odeio, desde a vez que fui atacada por um veado na Floresta Negra, malditas sejam essas criaturas diabólicas. Irei erradicar a sua presença da face da Terra! - o arqui-inimigo ria sarcasticamente, enquanto apertava as mãos uma contra a outra.
Este momento seria interrompido pela nefasta hora em que se preparava para degustar um belo lombo de veado, dádiva do jantar frugal inglês.
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