João Pedro Matos

Tesouros da Música Portuguesa

O fado cosmopolita de Carlos do Carmo

Quando foi lançado em 1977 o álbum “Um Homem na Cidade”, Carlos do Carmo assumiu-se definitivamente como intérprete cosmopolita do fado. Significa isto que, como grande intérprete que é, alcançou o estatuto que só alguns atingem por não se cingirem a um único género musical. E se o ouvinte menos atento o pode associar apenas ao fado, um outro mais observador percebe que ecoam no seu reportório, e na sua postura como artista, as vozes de grandes vultos universais da canção, como sejam Jacques Brel ou Frank Sinatra.

Faz, portanto, todo o sentido que tivesse gravado La Valse a Mille Temps de Jacques Brel ou que tivesse cantado com a Orquestra de Count Basie, visto tratar-se da mesma orquestra que acompanhou Frank Sinatra. Evidentemente, o seu berço foi o fado, sendo filho da cantadeira Lucília do Carmo. Mas cedo sentiu apetência para cantar outras músicas, tendo gravado um disco com sambas de Luís Gonzaga aos nove anos de idade.

E cedo viu-se lançado no mundo, porque foi estudar para o estrangeiro, mais concretamente para a Suíça, onde obteve dois diplomas: um referente a hotelaria e turismo, e um segundo que lhe ensinou a dominar cinco línguas. Regressado a Portugal, chamou a si a gerência de “O Faia”, casa de fados que pertencia aos seus pais.

Na verdade, a atividade artística de Carlos do Carmo só teria início em 1964, quando grava Loucura, fado que a sua mãe cantava habitualmente. Seria o início de uma carreira brilhante, quer em Portugal, quer no estrangeiro. Desde logo a gravação de Loucura deixava adivinhar uma rutura com o fado tradicional, na medida em que se fazia acompanhar por piano e guitarra elétrica. Era o que, mais tarde na década de setenta do século XX, se iria designar como Fado Novo, nome que tentava representar uma nova corrente do fado aberta a diversas influências, não obstante continuar a beber do filão tradicional.

Na década de setenta assistir-se-ia à consagração de Carlos do Carmo como intérprete maior do fado e da canção em Portugal: primeiro, quando participou no XXI Concurso Eurovisão da Canção, em 1976, com a composição “Uma Flor de Verde Pinho”; depois, no ano seguinte, com o lançamento do álbum “Um Homem na Cidade”. Fazendo parte de uma trilogia que se completaria com “Um Homem no País” e um “Homem no Mundo”, este álbum resulta principalmente da excelência do trabalho de José Carlos Ary dos Santos, que escreveu sobre a cidade de Lisboa em quadros poéticos extraordinários, como sejam “O Homem das Castanhas”, “O Cacilheiro”, “O Amarelo da Carris”, “Fado Varina” ou “Balada para uma Velhinha”.

As composições são da autoria, entre outros, de Paulo de Carvalho, José Luís Tinoco, Mário Moniz Pereira, Martinho d’Assunção ou António Vitorino d’Almeida. É precisamente a partir de Um Homem na Cidade que Carlos do Carmo dá concertos por toda a parte: Argentina, Brasil, Estados Unidos, México, Canadá, Venezuela, França e Alemanha são alguns dos países que se renderam ao talento de um dos maiores intérpretes portugueses. Assume-se, por isso, como um homem no mundo, e os seus álbuns ao vivo espelham o estrondoso êxito que alcançou nesses países. Destacam-se, naturalmente, os álbuns “Ao Vivo no Olympia (1980)”, “Live Alte Oper Frankfurt (1983)” e “Ao Vivo no Canecão (1988)”.

Tem colaborado com artistas maiores da música portuguesa, como Bernardo Sassetti, Maria João Pires, Sam The Kid, Carlos Martins ou Laurent Filipe, a provar que o fado não conhece fronteiras entre géneros musicais. Em 2014 foi agraciado com o prémio Grammy pelo conjunto da sua obra (não devemos esquecer que só outros dois artistas nacionais receberam o prémio Grammy: a soprano Elisabete Matos e José Cid). Carlos do Carmo já anunciou que em novembro de 2019 abandona os palcos, porque no próximo dia 21 de dezembro completa oitenta anos de idade. Não obstante, permanece ligado às novas gerações do fado, por ele próprio ser um dos expoentes máximos do Fado Novo.


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