João Pedro Matos
Tesouros da Música Portuguesa
O encontro entre o fado e o jazz
O jazz, o qual resulta de sessões musicais mais ou menos livres, esteve sempre aberto a combinações harmónicas improvisadas, consoante a capacidade inventiva dos seus executantes. Mas a verdade é que os melhores instrumentistas de jazz sempre se inspiraram em frases melódicas já preexistentes numa tradição cultural, seja ela a tradição afro-americana (o blues) ou outra.
Por isso não surpreende que um dos seus géneros mais apreciados seja a chamada fusão (não somente com o rock), e que advém do encontro com outros estilos ou culturas. O primeiro registo de fusão foi talvez o disco Manteca de 1947, de Dizzy Gillespie e Chano Pozo, onde o trompete e a voz de jazz se combinam com os ritmos latinos e africanos da música cubana.
Mas só em 1959, pela mão de Miles Davis, é que o jazz bebeu a influência da cultura hispânica, designadamente da Andaluzia, no álbum Sketches of Spain, onde se salientava o belíssimo Solea. No ano de 1963 o jazz recebeu a bossa nova através do saxofonista norte-americano Stan Getz, quando convidou João Gilberto e Astrud Gilberto para gravarem o famoso tema Garota de Ipanema. Um ano antes já Stan Getz havia alcançado êxito assinalável com uma versão de Desafinado, um original de António Carlos Jobim.
E em 1968 o sax tenor Don Byas, elemento fundamental na transição entre o swing e o bop, foi apresentado a Amália Rodrigues por Luiz Villas-Boas. Pensou-se de imediato em fazer um disco que refletisse a fusão entre os dois mundos, o fado e o jazz.
Então, na tarde de 11 de Maio de 1968, sem preparação e quase de improviso, foram gravadas doze faixas, entre elas clássicos do fado tais como Povo Que Lavas no Rio, Estranha Forma de Vida, Rua do Capelão ou Ai Mouraria.


A realidade é que Amália já havia sido comparada a Bessie Smith (a imperatriz do Blues) pela entoação da sua voz, pelo que não pareceu estranho o contato das duas linguagens musicais. E, por outro lado, a diva do fado havia atuado por diversas vezes nos Estados Unidos, atuações que culminaram com os espetáculos na Broadway e que depois foram registados em 1965 com arranjos e direção de orquestra de Norrie Paramor.
Assim, o jazz estava longe de ser uma expressão musical estranha à cantadeira; o mesmo vale para o jazz que já havia conhecido o fado, quando o lendário Louis Armstrong gravara em 1953 a canção Coimbra. É preciso não esquecer que a referida canção, traduzida sob o título April in Portugal, já dera a volta ao mundo. E Lisboa Antiga seguiu-lhe os mesmos passos, sendo hoje fácil encontrar nas plataformas digitais inúmeras versões instrumentais desta canção.
Naturalmente, Coimbra e Lisboa Antiga integraram o reportório da sessão de gravação de 1968, produzida em Paço de Arcos e que tivera ainda como protagonistas Raul Nery e Fontes Rocha na guitarra portuguesa, Júlio Gomes, na viola e Joel Pina, na viola-baixo. As doze faixas apenas foram reunidas em disco no ano de 1973, e agora reeditado em 2019. Talvez o resultado não tivesse sido plenamente satisfatório, o que explica o disco ter sido só editado cinco anos depois da sua gravação.
Não obstante chamar-se Encontro, não expressa propriamente uma fusão entre o fado e o jazz, mas o diálogo entre as duas linguagens musicais: Don Byas não se limita a acompanhar Amália, sendo que o seu saxofone surge como uma segunda voz (como sucede nas faixas Rua do Capelão e Não é Desgraça Ser Pobre), a qual improvisa por vezes sobre a linha melódica dos fados.
Há que sublinhar que este álbum é precursor de outros que aproximaram o jazz das músicas do mundo, antecessor de álbuns como o genial Rosensfole de Jan Garbarek com a cantora de música tradicional norueguesa Agnes Buen Garnas. Numa próxima ocasião, tencionamos aflorar a vasta carreira de Amália, a propósito do centenário do seu nascimento.
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