Crónicas do Passado
Francisco Oliveira Simões
O Cavaleiro Imortal
O fumo claro e nostálgico das fogueiras apagadas desvanecia-se no ar fresco matinal, sob o olhar expectante dos combatentes. Os penhascos estavam repletos de arqueiros galeses de flecha em riste, precisos e impassíveis. Os infantes aguardavam de pé, com a lança e o escudo bem seguros nas mãos soadas. Os cavaleiros empunhavam as espadas, bestas e maças, cobertos pela cota de malha e a armadura ainda incompleta, carregando nos ombros a salvação terrena do Reino de Portugal. O bacinete, ou o elmo, dava a impressão de estarmos na presença de autênticos seres míticos, como o cavaleiro Agilulfo, da autoria de Italo Calvino.
Os castelhanos não tardavam a chegar, o momento temeroso aproximava-se velozmente, longe do divino destino, a guerra sangrenta e portentosa, a mesma que agora tinha acesso ao canhão, essa arma destruidora e suicida.
As montadas galopavam num trote sem tréguas, o homem e o cavalo eram um só ser, a arma fatal e letal, mas de repente, sob o som da trompa fulminante, os peões portugueses abriram caminho e os cavalos mortíferos caíram nas covas de lobo, os outros cavaleiros sucediam na queda, numa cadeira de morte e perda sem rival. Parecia que a glória ufana dos castelhanos lhes tinha turvado a visão do inevitável fim.
Apesar de tudo, muitos soldados transpuseram a barreira, das flechas e das covas, e vinham furiosos em busca de vingança. O Rei lutava com bravura ao lado dos seus homens, sem dar a mínima trégua àquelas que queriam fazer desaparecer a liberdade do seu povo estoico. A espada reluzia em mil sois por entre o sangue impuro dos derrotados. O temerário e cruel cavaleiro D. Álvaro Gonçalves de Sandoval ameaçou a vida do nosso Mestre, arremeteu a sua espada luzidia e pérfida ao cavalo real, fazendo com que o Soberano caísse. Ao levantar-se, D. Álvaro prenunciou-se: - Desisti de Vosso Reino, rendei-Vos a El-Rei Juan de Leão e Castela. - Nunca o farei, o meu povo será eternamente livre, com a graça de Deus e de São Jorge. - Dei-Vos escolha, que Deus seja piedoso com a Vossa morte, cristão infiel.
Quando era levantado o montante até ao sol escaldante da tarde, uma maça embateu violentamente na sua cabeça. O som inquebrável do corpo findo a culminar na terra manchada de odio, sangue e suor, fez-se ouvir. A morte tinha chegado para o castelhano, o Rei sobreviveu, com a graça divina.
No meio da turba cavaleiresca, Sua Alteza reconheceu o seu fiel e valoroso cavaleiro salvador D. Martim Gonçalves Macedo. A Batalha Real chegara ao seu inevitável fim, sob a vitória de Portugal, anunciada pela debandada cobarde dos inimigos. Muitos foram os responsáveis pelo triunfo, mas só alguns os heróis. - D. Martim Gonçalves Macedo, nobre fidalgo, graças ao Vosso ardor combativo, à Vossa coragem e ousadia, estou vivo de boa saúde para governar este Reino. - Vossa Alteza, toda a empresa que cumpro é por Vós e pelo nosso Reino. - A partir desta data sereis Senhor das terras de Outeiro de Miranda, e conto com Vossa Senhoria para defender a minha família durante os séculos dos séculos.
Nessa mesma época decretou que se ergueria um mosteiro celestial dedicado à Santa Virgem Maria perto do local onde o confronto teve lugar. O Mosteiro de Santa Maria da Vitória permanece intocado pelo tempo, e o túmulo do nobre e bravo cavaleiro continua às portas da Capela do Fundador, na defesa eterna pela Dinastia de Avis. Talvez seja esse o segredo para a heroica intemporalidade do monumento.
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