João Pedro Matos
Tesouros da Música Portuguesa
A música portuguesa tem também Salada
Houve uma época da cultura lusa em que se procurava narrar uma certa vivência urbana, com uma preocupação estética autêntica para os novos desafios propostos pelo progresso que, na realidade, parecia ser ainda subdesenvolvimento relativamente às expectativas criadas. Após o 25 de Abril, os primeiros anos da década de oitenta do século passado encontraram um país desencantado, mergulhado na crise económica, distante das promessas de uma classe política já deveras desacreditada. Livros como Coca-cola Killer, de António Victorino d’Almeida, O Rei dos Lumes, de Américo Guerreiro de Sousa ou Crónica dos Bons Malandros, de Mário Zambujal, descreviam uma cidade (Lisboa) afundada no marasmo, povoada por personagens que eram caricaturas de si próprias, presas entre a esperança que alimentavam e os estratagemas que inventavam para ganhar o pão para a boca. No panorama musical, o filão dos chamados cantores de intervenção tinha-se esgotado (mesmo exaurido com a edição de Galinhas do Mato, de José Afonso) e chegara o tempo para a chamada música moderna aparecer finalmente, despontando então inúmeras bandas que conjugavam o entretenimento com crítica social. Vários discos marcaram este período, mas nenhum fez uma sátira da sociedade portuguesa da época tão assertiva como Se Cá Nevasse, dos Salada de Frutas. Se Cá Nevasse retrata um país constantemente adiado e, como eles próprios declararam à imprensa, consideravam Portugal um país em embrião, uma maqueta.
Gravado em Hilversum, nos Países Baixos, mais concretamente nos estúdios Wisseloord, os Salada de Frutas procuravam seguir os passos da banda britânica The Police, que gravara nesses mesmos estúdios o álbum Zenyatta Mondata. A gravação do disco contou com os engenheiros de som Ronald e Jan Fred, sendo o produtor executivo Ton Van Den Bremer. Nessa época, os Salada de Frutas eram constituídos por Zé Nabo, na guitarra e baixo, Guilherme Inês, na bateria, Carlos Pereira, voz e percussão, Zé da Ponte, baixo e teclas e Zé Carrapa, guitarra e teclas. Contaram ainda com Né Ladeiras que emprestou a voz na faixa Tanahora. As letras do álbum ficaram a cargo de Carlos Tê (mais conhecido pela sua duradoura colaboração com Rui Veloso), do jornalista e escritor Mário Zambujal e de Carlos Pereira.
O álbum, recentemente reeditado em vinil pelo seu quadragésimo aniversário, foi publicado em 1981 e tinha na capa a imagem do rei D. Sebastião, símbolo para um país à deriva, perpetuamente à espera. Tratou-se do segundo trabalho da banda, depois haverem lançado em 1980 o álbum Sem Açúcar, ainda com Lena d’Água na voz. Lena d’ Água vocalizou ainda o gigantesco sucesso comercial do grupo, Robot, gravado em Maio de 1981. Com a sua saída, Carlos Pereira tornou-se o novo vocalista e foi com uma nova formação que editaram Se Cá Nevasse. O segundo disco revelava uma banda mais amadurecida e que se afastava de cânones da pop comercial, enveredando por uma sonoridade alternativa. Nele merecem destaque, para além da faixa que dá nome ao álbum, os temas Zimalabaristix, Tanahora e o instrumental Namaptess.
Quando se transformaram apenas em Salada, o grupo produziu um disco muito mais elaborado, que privilegiava uma faceta experimental, com temas quase todos instrumentais. Mas Crime Perfeito, lançado em 1982, foi um trabalho que não atingiu o sucesso do anterior, o que conduziu a banda a um beco sem saída e levou posteriormente à sua dissolução.
Os Salada terminaram em 1983, continuando cada um dos seus elementos por uma via profissional diferente, mas quase todos ligados à indústria da música. Em 2010 é editada uma compilação do melhor dos Salada de Frutas, a qual incluía alguns temas remisturados. E, em Dezembro de 2021, vê de novo a luz do dia a obra prima do grupo, o álbum Se Cá Nevasse que assim se encontra agora à disposição no formato de vinil.
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