José Travaços Santos

Apontamentos sobre a História da Batalha (196)

Jogos tradicionais do povo (II)

Em Setembro de 2006 publiquei nesta secção um apontamento sobre os jogos populares. Este segundo, quase treze anos depois, continua o tema embora não o esgotando de forma alguma, tão grande é a riqueza deste ramo da nossa Cultura, e faço-o num tempo em que se torna acto frequente a classificação internacional de diversos valores matérias e imateriais das nações. Classificação, louvável a todos os títulos, que talvez seja uma tábua de salvação de patrimónios que doutra forma se perderiam irremediavelmente. E estes merecem-na.

É possível que o leitor não se recorde daquele apontamento em que eu dava a conhecer o “jogo do mioto”, passados que foram tantos anos, explicando que o jogo nos chegara pela memória e pela mão do saudoso folclorista, meu sempre lembrado mestre, António Pereira Marques, que o jogara na sua meninice quando pastoreava um rebanho nas pastagens da Serra de Aire, nas proximidades da Torre da Magueixa, onde então vivia na casa duma madrinha. Torre da Magueixa, para quem não o saiba, é antiga povoação da freguesia do Reguengo do Fetal. Acontecia isto pelos anos 20 do século XX. Há cerca de quarenta anos andei por ali com o Mestre Marques o com o José Rino Barraca, nos mesmos locais onde pequenos pastores se divertiam dessa forma.

Dava eu conta, no citado apontamento, que em Serpa, belíssima vila do Baixo Alentejo, onde vou sempre com o maior aprazimento, também tinha havido uma jogo semelhante denominado “ruxa milhano”, designando o “milhano” o mesmo que “mioto”, quer dizer: nomes que o povo dava ao milhafre.

Ora, tempos depois daquele meu apontamento, recebi uma amável carta, datada de 10 de Fevereiro de 2009, do ilustre sacerdote e historiador, Cónego Dr. Luciano Coelho Cristino, natural da Maceira, freguesia da vizinha da nossa, que me informava que na sua terra houvera um jogo idêntico, mais propriamente na Maceirinha, descrevendo-o assim:

“Os jogadores (pintos) colocam-se em fila indiana, com as mãos poiadas nos ombros uns dos outros, girando em círculo. O da frente é a mãe (galinha). No meio anda o “mioto” a esgravatar num monte de areia. A mãe pergunta-lhe então: - “Ó comadre (sic), de que é que você anda à procura? – Ando à procura de agulhas ferrugentas que os seus filhos mais os meus perderam, enquanto fui à missa. – Não pode ser, diz a mãe, porque eu deixei-os atrás da porta a roer cortiça. Então, olhe se quiser um pinto vá lá atrás.

“Nessa altura, o “mioto” levanta-se e procura roubar os pintos, a principiar pelos de trás, mas a mãe procura afugentá-lo com uma bicada no lenço (no já recolhido na Torre a “mãe” usava uma vergasta), dizendo “xô mioto”.

Quando o “mioto” consegue agarrar um (pinto), leva-o para uma canto, onde o põe de cócoras, com as mãos metidas na curva das pernas, e deixando-o a cacarejar; “Có-có, careca; có-có, careca”. E assim, até ao que está imediatamente atrás da mãe.

“Depois, enquanto os pintos cacarejam, numa fila, ao lado um dos outros, na posição mencionada, o mioto e a galinha traçam no chão tantos círculos quantos os pintos, e põem um nome em cada um, por exemplo: açúcar, arroz, céu, inferno, couves chocas, batatas podres, etc.. Em seguida, o mioto e a galinha vão verificar o estado de aquecimento das mãos dos pintos, a principiar pelo primeiro que foi apanhado. Se as mãos estiverem quentes, colocam-nos na mesma posição, e o mioto e a galinha levam-nos nos braços, em asa, para um círculo com nome agradável. Se estiverem mornas, dão-lhe uma pequena picadela com uma caruma nas duas mãos e vão para um círculo mais ou menos bom. Se estiverem frias, levam uma picadela maior e vão para um círculo mau. Aí os pintos continuam a cacarejar.

Então, o mioto e a galinha fogem uma para cada lado, com terra na mão (milho) e vão-na deixando cair aos poucos, dizendo: Pi, pi, quem não vem não come!

O pinto que conseguir agarrar a mãe, será a mãe do jogo seguinte, e o que apanhar o mioto, será o mioto.

Observação: Também na Maceirinha, quando se avistava um milhafre a esvoaçar, gritava-se: Mioto, mioto, vai ao Vale do Horto. Que está lá um burro morto!”

Esta interessantíssima descrição do jogo do mioto na freguesia da Maceira, que me foi amavelmente enviada pelo Dr. Luciano Coelho Cristino, merece uma análise cuidada e um estudo comparativo com os outros jogos semelhantes, o que tentarei fazer num próximo apontamento.

Entretanto, fui acumulando informações que me deram conta de, além dos jogos recolhidos na Torre da Magueixa (Mestre António Marques), na Maceira e em Serpa, referido por Ladislau Piçarra, na sua valiosa revista “Tradição” de Abril de 1902, reeditada pela Câmara Municipal de Serpa em 1997, cuja descrição dei a conhecer naquele número do “Jornal da Batalha” de Setembro de 2006, haver danças dedicadas ao milhafre, com o mesmo sentido ou muito semelhante aos nossos “Jogos do Mioto ou do Milhano”.

Na Guiné-Bissau há e a sua curiosa dança já foi apresentada na Batalha por altura das comemorações do 6º centenário da Batalha Real de Aljubarrota, em Agosto de 1985. Neste momento aguardo informação sobre esta manifestação do Povo ou de uma das etnias que compõem a população guineense.

Entretanto, recolhi do 1º volume das Actas do Congresso de Etnografia e Folclore promovido, de 22 a 25 de Junho de 1956, pela Câmara Municipal de Braga, páginas 195 e 196, esta informação do investigador António de Almeida, sobre uma dança idêntica em Timor:

“A dança do milhafre é efectuada por alguns homens e mulheres, de braços estendidos, segurando um pano ou lenços nas mãos a simularem as asas da ave de rapina adejando antes de cair subitamente sobre os pintos indefesos. As sombras dos dançarinos, projectadas no solo, lembram realmente as dos milhafres”.

Como o leitor vê, o assunto tem um interesse fora do comum e bem investigado pode trazer-nos insuspeitadas proximidades culturais, que no caso da Guiné e de Timor a secular presença portuguesa nestes países não explica por si.

A imagem que se publica é uma excelente fotografia do fotógrafo de arte alemão Ulrich Schmidt, tirada a 9 de Agosto de 2014, na 29ª Gala Internacional de Folclore da Batalha, ao Rancho Folclórico Rosas do Lena quando o agrupamento exibia o “Jogo do Mioto”. Esta valiosa peça da nossa Cultura é, desde finais dos anos 70 do século XX, parte indispensável do repertório do Rancho, sempre com o sentido de não deixar cair no esquecimento o significativo jogo e de chamar a atenção para a salvaguarda dum património que não se pode resumir às música, danças e trajo, mas que engloba todas as manifestações distintivas do Povo Português, o nosso Povo.

Consultas:

Biblioteca particular e Biblioteca Etnográfica do Rosas do Lena.


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