Francisco Oliveira Simões (Historiador)

Crónicas do Passado

Goscinny e Heródoto

Lembro-me de entrar na primeira aula que tive no curso de Licenciatura em História, uma das cadeiras mais complexas segundo contam as fontes. O professor fez as apresentações habituais, que manda a formalidade ancestral entre educadores e educandos. Depois seguiu-se o discurso que vou passar a relatar.

- De certo que já reparam na bibliografia obrigatória desta cadeira, mas há muitos mais livros que é importante terem lido. Quem daqui da turma já leu Astérix?

Cerca de metade dos alunos colocou o braço no ar, incluindo eu. 

- Lucky Luke?

Alguns alunos baixaram o braço.

- Oumpah-pah? 

Já não se avistava qualquer ação por parte dos atentos estudantes, que se dedicavam agora a escrever freneticamente nos seus cadernos imaculadas. Eu mantinha o meu braço levantado.

- Jehan Pistolet? Falta-me algum? - disse voltando a sua atenção para mim.

- O Iznogoud - respondi.

- Claro, o Iznogoud. Fiquem a saber que todas estas obras de banda desenhada têm argumento de René Goscinny e são de extrema relevância para aprender e aprofundar a História. Quem leu estes álbuns já tem uma intelectualidade muito acima da média.

De facto, as cinco bandas desenhadas aqui contempladas utilizam diferentes períodos da História como pano de fundo. Astérix (1959) centra a sua narrativa no ano 50 a. C., durante o período governativo de Caius Júlio César, que conquista a Gália e a integra nos domínios do Império Romano. Lucky Luke (1946) relata as peripécias de um cowboy durante os finais do século XIX nos EUA, história muito marcada pelos westerns cinematográficos do época. Oumpah-pah (1951) conta as aventuras de um índio do Norte da América, que assistiu à chegada dos colonizadores franceses no século XVIII. Jehan Pistolet (1952) é um corsário inexperiente ao serviço do rei Luís XIV, em finais do século XVII. Iznogoud (1962) descreve em vários episódios, a forma maquiavélica e descuidada como um Grão-Vizir tenta derrubar o reinado do bondoso Califa Haroun El Poussah, com o objectivo de tomar o seu trono. Bagdade na Alta Idade Media serve de cenário para estas conjuras.

Como percebemos são vários os lugares e momentos históricos escolhidos por Goscinny, demonstrando a sua versatilidade e conhecimento. Estas criações só poderiam ser possíveis pela colaboração talentosa com os ilustradores Morris, Albert Uderzo e Jean Tabary, apesar de Goscinny ter uma grande aptidão para o desenho. 

Para além das narrativas históricas, René Goscinny também criou argumentos desenvolvidos na contemporaneidade. Luc Junior (1954), trabalho realizado em conjunto com Uderzo, apresenta-nos as aventuras de um jovem repórter, o seu cão Alphonse e o fotógrafo Laplaque. Juntos vão à América e até viajam a Marte. Este personagem foi idealizado para fazer frente à enorme concorrência de um outro jornalista bem mais famoso, o Tintin. O diretor da publicação Le Libre Junior pediu expressamente para que se encontrasse uma história que rivalizasse com o herói belga, tendo-se decalcado a sua formula, sempre acompanhado de humor. Valentin Le Vagabond (1964) foi desenvolvido ao lado de Tabary e queria personificar o hippy dos anos 60 em todo o seu esplendor. Podemos descrever este singular personagem como um intelectual, poeta, admirador da liberdade, da natureza, dos animais e das pessoas em geral. O objectivo era encapsular uma época através do humor e da ingenuidade de um pacifista.

Em novembro passam quarenta e cinco anos que este vulto da nona arte nos deixou, mas a sua marca é indissociável de toda a banda desenhada que se lhe seguiria, sem mencionar que as séries Astérix e Lucky Luke continuam a ser publicadas ainda hoje, tentando sempre imolar o seu humor, génio e estilo.

 


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