Francisco Oliveira Simões (Historiador)

Crónicas do Passado

Elegia romântica das ilusões roubadas

Tropeçava no meu ego desalentado, numa demanda lapidar pela paixão que me abandonara naquele jardim matinal. Lisboa oscilava traços boémios e remanescentes de outras eras ancestrais. Numa dessas noites melancólicas e saudosistas, encontrei-me em deambulação inconstante e desnorteada, depois de me ter embrenhado por entre as trevas da obscuridade. Passei os candeeiros luzidios e recordei mágoas e triunfos com aquele andar despreocupado e fútil. Mas já chega de adjectivar a minha desgraça. Alcancei a Basílica da Estrela, quando ouvi o som dos sinos a repique, numa musicalidade tão familiar. A meia-noite havia chegado e convidou-me a sentar nos degraus do templo.

Desde aquela soirée onírica, onde conheci o travo do amor e da admiração artística, nada fora como dantes. Repousava o meu indolente crânio entre as mãos delgadas e desejadas pelas teclas da máquina de escrever, que o Álvaro de Campos me havia oferecido. Encontrava-me no dia 20 de Maio de 1935, o tempo estava ameno e as lembranças sonhadoras alerta, como se alguma vez não estivessem. Penso demasiado no passado, talvez porque é esse o meu oficio. A História é onde vivo, a minha verdadeira morada e a certeza de que posso velejar por eras infinitas, um privilégio só ao alcance de alguns. Outros, julgam que se trata de uma maldição, isto de conhecer o que pereceu e nos persegue.

Foi embrenhado nestas divagações, que vi estacionar um Citroën mesmo em frente da Basílica. A porta de trás abre-se e saem de lá dois homens letrados e revoltados, que me agarram e atiram para o banco traseiro do automóvel negro.

- O que se passa? – Perguntei aturdido.

- Vai ser julgado pela sua indiscrição – Respondeu um homem sisudo de magra estatura e curto bigode.

- Seja como for, já não tenho grande coisa que valha. Os sonhos que idealizei foram miragens e a imensidão do nada – respondi catastroficamente.

- Aquilino, este é derrotista como todos nós, mas a bela Helena não o irá perdoar pela enorme afronta que nos infligiu – Comentava o outro cavalheiro que me agarrou.

- Falou na HELENA? Talvez ainda haja esperança. Quer dizer que estive mesmo ao lado daqueles vultos literários?

- Parece impossível, ainda nos esfrega na cara – Comentava o Aquilino Ribeiro – Esteve e fez questão que isso fosse publicado nos jornais. Já se familiarizou com a nobre arte de guardar segredos?

Reservei-me a um silêncio ensurdecedor, maravilhado com a confirmação da realidade por estar ao lado de escritores tão admiráveis. Tentava descortinar as feições dos outros dois tripulantes, mas acabaria por meter conversa e saber tudo sobre um eles.

- É poeta, não é verdade? – Indagava eu ao escritor não identificado.

- Sim, mas fiquei preso ao século XIX. Uns ainda me apelidam de ser o homem mais romântico do século.

- Só se pode tratar de Joaquim Ribeiro de Carvalho.

- Como sabe?

- Eu li o que escreveu desde os seus dezassete anos, com o Livro d´um Sonhador. O seu eterno espirito de jovem apaixonado fez-me perceber que não estou sozinho na minha aventura.

- Saiba que os sentimentos que depositei em cada verso são reais.

- Isso sente-se. Tenho uma pergunta, chegou a respirar o perfume do primeiro amor de novo?

- Calem-se, homens de Deus! Vocês, os românticos, falam demais – ripostava irritado o Aquilino.

O condutor não falava e limitava-se a conduzir-nos para o tribunal da HELENA. Apercebi-me que estávamos a estacionar o carro mesmo junto ao Museu do Chiado, no coração da cidade. À entrada do Museu encontrava-se um artista de porte elegante e olhar altivo.

- Finalmente chegam, já não era sem tempo – Anunciou o prodígio desconhecido.

- Adriano, agradecemos-te muito a cedência do excelso Museu que diriges, para o nosso tribunal improvisado – Agradeceu Joaquim.

- Pois, pois, mas resolvam o assunto rapidamente – Respondeu secamente Adriano Sousa Lopes, actual director do Museu do Chiado – Mas esperem, eu acho que estou a reconhecer o vosso réu.

- A sério? Eu gosto muito dos seus quadros.

- Já sei, li um artigo seu sobre o Benjamin Rabier.

- Gostou?

- Havia muito mais a dizer, mas podia estar pior.

- Ainda há mais essa, o Benjamin é um génio e você limitou-se a dedicar-lhe meia página de jornal – Recriminou-me o Aquilino.

- É o espaço de que disponho.

- Explique isso ao nosso juiz.

Com esta frase, Aquilino Ribeiro, pôs termo à nossa agradável conversa e arrastou-me para uma sala de exposições ampla, onde sobressaiam os quadros de Columbano Bordalo Pinheiro, ex-director daquele Museu. Tantos retratos circunspectos e loquazes me fitavam de forma desaprovadora. O Grupo do Leão estava cabisbaixo pela minha indiscrição. Ao fundo da sala via-se uma mesa alta de madeira de carvalho, com três magistrados a presidi-la. Sentaram-me mesmo em frente desses altos dignitários e esperavam as suas primeiras palavras.

- É este ser o traidor da nossa causa? – Perguntou o juiz.

- É, sim, Bernardo! – Afirmou convictamente Aquilino Ribeiro.

O julgamento ia dar início e a minha condenação parecia quase certa. Bernardo Soares perguntou-me porque haveria eu de expor publicamente a existência e actividade daquela organização secreta. Segundo ele, nada deve ser revelado em demasia e a nossa vida só pode ser contada de forma banal e intrincada. Compreendi que não havia nenhuma resposta que pudesse dar para reverter a minha situação. Os olhares de desaprovação estavam cravados em mim e não encontrava ninguém que tivesse estado presente naquela famosa noite de 3 de Maio.

- Já que as suas explicações se mostram infrutíferas a este tribunal, condenamos o réu a só poder escrever sobre trivialidades até à eternidade – Assim decretou o juiz, sob a aprovação geral dos restantes escritores.

Não podia esperar maior afronta e ataque à minha arte. Como ia agora continuar os meus dias, sabendo que da minha pena apenas sairiam frases feitas e dignas de La Palice? Mas, para gaudio da tinta que me escorre nas veias, a porta da sala abre-se repentinamente e, como luz incandescente, Fernando Pessoa revela-se.

- O que estão a fazer é um erro, o Francisco é o nosso enviado ao século XXI. Ele foi incumbido de relatar as nossas façanhas aos leitores do futuro, para que a HELENA nunca seja esquecida de todos aqueles que amam a criatividade e a liberdade.

- Fernando, já nos podias ter avisado, agora tudo faz mais sentido – Disse Miguel Torga, que foi o nosso motorista até ao Museu.

Toda a gente pareceu muito consternada com o sucedido, o que resultou na proposta de irmos tomar um copo para descontrair e esquecer aquele mal-entendido.

Descemos e fomos para a Rua das Portas de Santo Antão, onde bares e casinos clandestinos competiam pela atenção de quem por ali passava. Deambulávamos e parte do grupo dispersou-se pela euforia extasiante do conhaque e da libido. Cartazes vistosos e garridos anunciavam espectáculos de dança e concertos virtuosos, dignos de qualquer literato boémio que se preze. No meio de todo este corrupio, encontrei uma cara conhecida.

- Pois bem, meu caro amigo, o que o traz de novo à nossa humilde presença? – Perguntava animado Afonso Lopes Vieira.

- Fui parar ao tribunal do clube.

- Houve um equivoco, evidentemente.

- Sim! Mas onde nos aconselha a ir nesta rua sem fim?

- Vamos a um bar onde o piano rege e comanda quem o ouve.

Não foi preciso ouvir mais nada, o grupo seguiu as suas passadas confiantes e melancólicas, por entre os constantes apelos dos letreiros e placas ofuscantes.

O bar era escuro e misterioso, as mesas emergiam entre nuvens de fumo. Sentia-se o leve aroma à revolução e à aguardente envelhecida em barricas de carvalho. O silêncio harmónico pedia cordialmente a palavra, mas os nobres e augustos cavalheiros negavam-se a calar o seu mais celestial vibrato. O Almada decidiu juntar-se a um desses grupos que desafiava a sorte, num acutilante e acesso jogo de cartas. Eu, o Afonso, o Joaquim e o Fernando Pessoa fomos sentar-nos a uma mesa, mesmo em frente do palco deserto, mas tão enaltecido pela presença de um piano. A conversa continuou como se fosse uma torrente de água sem fim. Admito que sou demasiado falador.

- Joaquim, acha que há cura para o romantismo eterno que sinto no meu âmago?

- Não, somos infinitamente sonhadores e buscamos o amor perfeito.

- Eu estou apaixonado pela mulher mais brilhante e deslumbrante que a humanidade teve o prazer de contemplar nos seus vastos milénios.

- Nunca deixamos de estar, o sentimento não desvanece. O que o impede de ir ter com essa dama e dizer-lhe o que sente?

- Na verdade, não sei onde está?

- Eu acho que sabe, só se nega a encarar a realidade. Às vezes as verdades são tristes e incuráveis.

Enquanto falávamos de sentimentos puros e inquietações da alma, o piano iniciava a sua ode a Apolo. Debussy era quem nos revelava os segredos e mágoas de outrora, para depois deixar correr as lágrimas cristalinas pela face enrubescida da sociedade. A pianista estava de costas para a plateia, que nesse instante calou o monótono barítono e deu lugar ao suave eco de soprano. Tudo o que dizia eram meras palavras, ideias desconexas e perdidas, ao pé de tão doces gestos repletos de emoção. O meu encantamento parecia durar séculos, mas foi despertado no momento em que a artista se levantou e agradeceu os aplausos. Reconheci o seu rosto cândido e o olhar determinado, era a mulher que me roubara os pensamentos desde o nosso encontro no Jardim da Estrela.

- Foi esplendido, não foi, Francisco? – Perguntava o Afonso – Mas o que se passa consigo? Parece que viu um fantasma.

- De facto, vi. Tenho de ir buscar outro cálice de Porto.

Levantei-me e tentei encontrar a musa inspiradora. Vi que se tinha sentado numa mesa junto ao palco, cedendo lugar nas teclas a um senhor mais velho, que optava por executar composições musicais de jazz.

- Posso-me sentar? Não sei se te lembras de mim?

- Lembro-me perfeitamente, estava cheia de saudades tuas.

- Agora que nos vimos de novo, espero não te perder de vista.

- Acredita que não vais, quero-te junto a mim.

- Não sabia que tinhas tanto talento.

A partir daí falámos noite dentro. Os sorrisos cúmplices brotavam com tanta facilidade e não nos calávamos. Neste momento, o sábio pianista tocava Scott Joplin e comecei a ouvir a voz emblemática do Almada.

- Quem se atreve a fazer batota?

- Ninguém, homem, aqui é só gente séria.

- Cambada de aldrabões!

A mesa já tinha sido derrubada e tudo se conjugava para um arraial de pancada dos antigos.

- O Almada Negreiros é teu amigo?

- Conhecemo-nos há uns dias.

Tomei logo o impulso de o ajudar usando o argumento mais famoso.

- Desculpem, cavalheiros, mas o meu amigo bebeu de mais.

- Eu não toquei numa pinga de álcool – Ripostava o Almada.

Claro que ninguém acreditou, apesar de eu saber que era verdade. Os meus esforços foram em vão e a batalha começou. As cadeiras voavam como obuses e os gritos silvavam nas trincheiras improvisadas. Eu e a minha musa escondemo-nos atrás do balcão.

- Relatório da situação, camarada? – Perguntava-me ironicamente a pianista.

- Temos um soldado abatido e quatro em parte incerta.

- Tentar plano de retirada! Eu conheço bem este bar, não vai demorar até sairmos daqui. Quando eu disser três, segues-me.

Corremos por entre o conflito armada, em parvo. Vimos garrafas de champanhe a explodir no território da diplomacia e copos de bagaço a alvejarem o feudo da inspiração dramatúrgica. Pelo que percebi, o Almada já nem se encontrava naquele local bárbaro, o que me aliviou bastante. Por fim, conseguimos alcançar uma saída lateral do bar.

Quando ainda estávamos com a respiração ofegante, olhámos um para o outro e rimos perdidamente. Ela levantou a cabeça e encarou-me com aquele semblante desarmante.

- Tinha sonhado partir para Florença com alguém que me fizesse tão feliz como me sinto neste momento.

- Esse dia chegou! Sempre tive o mesmo desejo – Respondi sonhadoramente.

- O que achas de irmos já amanhã.

- Adorava, mas não queres esperar mais uns dias?

- O tempo não espera por nós. Agora que te encontrei, não te quero perder de novo.

Sem mais nem menos, partimos para Roma no primeiro barco que zarpava de Lisboa no dia seguinte. O Mediterrâneo marulhava ao som dos nossos desejos, o vento suave trazia a fragância da maresia, que fazia soltar os cabelos da deusa celeste. O seu olhar determinado e sonhador, que tudo pretende vencer e conquistar, comandava o meu destino. Todos os poesias e odes declamadas pela minha verve eram insignificantes diante de tão insigne artista e bela criação humana.

Quando o nosso navio atracou em Roma, tratamos logo de apanhar um comboio até à cidade dos Médicis e de Maquiavel. Ficámos na Pensão Bertolini, decorada ao estilo britânico, e pedíamos um quarto com vista sobre aquela maravilhosa paisagem. O quarto foi-se amontoando de memórias e projectos.

Quando nos preparávamos para jantar, a dona dos meus pensamentos olhou para o piano, que se estendia sobre o salão, atraída por uma força divina. Caminhou lentamente e sentiu ao de leve as teclas decadentes e estáticas, acordou o seu sono eterno para imortalizar aquele pedaço de arte. Sentou-se e começou a tocar a Sonata ao Luar, de Beethoven. O fatalismo abalou de novo a minha alma inquieta e só. Contemplei de relance Florença e as suas basílicas centenárias, sabendo que nada havia de diferente entre as obras de arte renascentistas e a minha pianista Artemis. A música prosseguia num suspiro cadenciado. Mas ao vislumbrar de novo o moribundo instrumento, apercebo-me de que toca sozinho. Perdi o rasto da sonhadora artista.

- Teve a mesma visão que eu? – Perguntava-me um desconhecido em traje de Verão creme.

- Penso que sim, a beleza desapareceu da face da Terra.

- Acho que devia ler menos, principalmente o que eu escrevo.

- É escritor?

- Edward Morgan Forster, prazer.

- Francisco…

- Eu sei quem é, venho entregar-lhe uma carta da parte do Evelyn Waugh.

- Mas como sabiam que aqui estaria?

- Nós sabemos sempre onde os leitores se escondem.

Forster passou-me a carta lacrada que trazia. Percebi tratar-se de um simples convite de Waugh para uma soirée no seu palacete nos arredores de Londres. Iam juntar-se as mentes mais brilhantes do panorama literário britânico. Como não tinha nada melhor para fazer, para além de afogar as minhas mágoas pelo futuro que me escapou por entre os dedos, decidi partir rumo às brumas neogóticas.


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