Francisco Oliveira Simões (Historiador)

Crónicas do passado

Carta de Maputo

Este mês recebi uma carta de Maputo, vinda de um correspondente do Jornal Noctívago. Pelo que me foi dado a saber, este jornalista atravessou dificuldades e presenciou um período catastrófico do recente conflito armado em Moçambique. Ao deixar-nos o seu testemunho espera alertar Portugal para o problema da introdução das crianças na vida militar. A carta está incompleta, mas caso os leitores tenham interesse publicarei o resto da mesma.

“Ouço o vento rarefeito soprar entre as verdes folhagens húmidas e altas, num suspiro precoce da salvação que tarda em chegar a estes confins da Terra. O sono resiste a tudo nesta selva densa e profunda onde me encontro. As condições não são as mais favoráveis para descansar ou descontrair, o estado tenso e inquieto impera sobre as minhas reações mecânicas e instintivas. Sentado contra uma umbila, encosto a cabeça pesada no tronco da árvore, mas assaltam-me lembranças mórbidas e terrivelmente deprimentes aos olhos da Humanidade livre de onde venho.

O clima escaldante e tropical atravessa a minha pele e adensa o ódio que carrego nos ombros, um sentimento desinteressante e mesquinho que nunca esperei alcançar. Ao menos posso pegar no meu caderno amachucado e velho e na caneta preta e prateada, oferecida por quem em tempos joviais amei, e escrever estas linhas. Sinceramente, não sei quem terá interesse em ler tais desgraças, para quem já leu Tolstói ou Gogol, isto é mais do mesmo, mas sem a comédia à mistura, claro está. Como poderia sobreviver o meu sorriso num lugar onde já há muito fora roubado da face da esperança?

Já se passaram cinco luas, desde que estou amarrado a esta umbila, tão preciosa para o povo moçambicano, só os meus braços estão soltos. Sei o que se estão a questionar, no entanto estes homens e crianças julgam que é completamente impossível eu desatar as cordas bem presas, justas aos meus rins sedentos por água. Sabem que ganho a vida como jornalista, e almejam que da minha caneta gasta saia um artigo glorificador dos seus feitos de malvadez. Mal sabem eles que este diário ficará relegado ao esquecimento de uma gaveta poeirenta e deslocada de uma secretária qualquer, se for de pau-santo melhor, mas julgo que é o máximo que posso alcançar. Se alguém ler este caderno sujo e intrépido, é uma vitória portentosa. Se o afirmo é porque a minha letra não é das melhores, mas se os nossos historiadores descodificaram ao longo de séculos as primeiras escritas do Homem, entre a cuneiforme e a hieroglífica, algum iluminado irá compreender a minha caligráfica deplorável.

As minhas ideias estão confusas e desordenadas, num caos absoluto. O que vi e presenciei é mais do que sobra para entrar em choque, chorar, vilipendiar e, sobretudo, escrever um excelente artigo. Quem quero enganar? Nunca me libertarei deste inferno, sou refém das imagens que vislumbrei, sou uma morte que ainda raciocina e admira a degradação dos princípios e da consciência. Que Mundo é este? Não foram estas as promessas juradas no curso de Jornalismo. Durante uma cadeira, lecionada por um desses baluartes da comunicação, foram-me pronunciadas estas palavras estoicas “Só nós, o papel e a caneta, frente à imensidão de mentiras, combatemos a corrupção com a dura luz da verdade”. Nesse momento éramos equiparados ao herói moderno, o pupilo do conhecimento universal. Mas o que sabia essa sumidade acerca da realidade das crianças em Africa ou das guerras fratricidas entre povos irmãos? A resposta é clara.”

Lourenço Marques

Correspondente do Jornal Noctívago


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